terça-feira, 26 de outubro de 2010

DOUTOR

Quero dizer que eu estava mais certa do que o senhor no dia em que eu disse que o meu problema não era com estabilidade de humor, mas sim com ansiedade. A ansiedade, sim, é que traz sérios problemas à minha vida prática, porque não consigo, por exemplo, pensar em uma só das obrigações que eu tenho a realizar, então penso em todas, e é como olhar para o meu quarto extremamente desorganizado, e em vez de começar a organizá-lo, fecho a porta e durmo no sofá. Com as minhas obrigações, a mesma coisa, eu me desespero ao vislumbrar todas elas e, para pensar noutra coisa, fico lendo, vendo e ouvindo coisas supostamente inúteis na internet e, quando me canso, vou procurar companhia no meu quarto bagunçado, depois, compulsivamente, na geladeira, e assim sucessivamente, ganhando merecidos rótulos de eternamente desleixada e preguiçosa. Só que a minha relação com a geladeira tem ido longe demais e eu já engordei uns dez quilos no último ano e, foi por isto, exatamente por isto, que eu lhe procurei. Mas não sem antes, claro, por uma questão de contextualização, contar como foi a minha vida turbulenta e, vezes, quase psicótica, no último ano, em que o senhor não teve contato comigo.

E o senhor vem me falar do meu caos afetivo: pois eu vou lhe dizer agora o sentido do meu caos afetivo - eu preciso desesperadamente do meu caos afetivo. Preciso dele para não ter que olhar as verdades de mim mesma o tempo todo - quero e preciso urgente e frequentemente das dúvidas que ele me gera, as mais cruéis, as mais inescapáveis, as mais insolúveis possíveis, justo para não ter que chegar à conclusão da qual ainda não consegui satisfatoriamente sair: de que viver, embora tenha lá suas alegrias, é algo tão deslumbrantemente estúpido, é a única oportunidade de conhecer tudo o que se há para conhecer na vida e, mesmo assim, diante da eternidade e da nossa própria finitude, é nada.

Então eu conheço, me esforço, vou com tudo, cheiro as flores, amo homens, mulheres, danço sob os céus mais estrelados e as chuvas mais ácidas, devoro as comidas mais deliciosas, saboreio os drinques mais doces, mergulho nos porres mais violentos. Tudo, tudo pelo meu amado, idolatrado, mas sobretudo, necessário, caos afetivo. Porque chega o momento em que eu me canso desses consumo, intensidade e correria todos, - mas sem o remédio que o senhor receitou, esse momento dura dois ou três dias, já com ele, eu me canso definitivamente, eu passo a odiar esse tal de caos afetivo, volto ao buraco de que hedonismo nenhum vai me tirar nem me fazer esquecer de que viver como a gente aprendeu, com estes valores sacro-cristãos-médicos-positivistas todos, é pura vaidade, prepotência, arrogância, o mesmo buraco que me ensinou que o bonito mesmo é sobreviver, quase como um bicho, mas com a diferença (e não necessariamente vantagem) de termos capacidade de amar, de criar presente e posteridade - ou vai me dizer que você dá o mesmo valor que a si mesmo à formiga que você acabou de pisar ao me receber na porta do seu consultório? Vamos fazer-lhe, pois, um funeral digno - e eu passo a não odiar você.

Até agora eu lhe falei de paciente a médico. Vamos lá, então, falar de igual a igual: o senhor sabe a função dessa tal psicologia e da tal psiquiatria também, não é?! Hipocrisias à parte, exaustões em voga, eu vou dizer: a função é única e exclusivamente manter a ordem do sistema. A não ser pelo cara que, quando pira, começa a agredir fisicamente todo mundo, nenhum desses outros (pensando bem, inclusive os agressivos), considerados "loucos, maníacos, depressivos, dda's, esquizofrênicos", etc, nenhum deles precisaria mais do que de amigos e família, de pessoas que soubessem conversar, ouvir, falar e construir qualquer coisa juntos, olhar pro sofrimento abissal de cada um deles sem querer enquadrá-los numa anormalidade qualquer, porque "Meu Deus! Vai que eles me convencem de que eles é quem estão certos! Vai que esse sofrimento todo é o sofrimento de quem está enxergando algum tipo de "verdade filosófica" que meus olhos não suportariam ver"... Taca pedra na Geni, no Saramago... Amarre na camisa de força, no medicamento, no hospital psiquiátrico, na análise... amarre logo, antes que alguém acredite ou resolva dar e eles mínimo de crédito...

Anteontem, eu acho, um grande amigo e eu concordamos que a boa psicologia é a que trabalha a favor do desaparecimento dela mesma, e o mesmo a respeito da medicina psiquiátrica. Sabe qual a lógica? É mais simples do que a gente pode imaginar: o sistema cria o problema para vender a solução, enquanto mercantiliza a manutenção dele. Exemplos: o sistema cria o crime, pra vender cadeia e empregos; cria guerra, pra vender arma e patriotismo chauvinista; cria patriotismo chauvinista, pra vender poder; cria poder, pra vender alienação; e, sucessivamente, cria miséria, para vender heróis... é isso que me faz sofrer, doutor, não lhe faz, não? Diga a verdade! Ou você vai me enfiar um par de compostos químicos pra resolver o sofrimento que estas nossas vidas miseráveis me causam?

Passa logo a porra da receita contra ansiedade, por favor, porque eu não agüento mais comer e  engordar como uma porca e, de todas as ditaduras à que eu tenho que me submeter pelo resto da vida, eu escolho, sincera e conscientemente, a da magreza.

Desde já, grata.


11 comentários:

Will Moura disse...

Lembra-se do poema de Moreno? Então, senti que te olhei com os seus olhos e com os meus também, já que utilizamos de vários recursos para nos sentirmos vivos e um deles é a identificação...

Gabriela Maria disse...

eu não sei se conheço esse poema, will... posta ele aqui! que bom q vc se identificou... me alivia mto. =*

Will Moura disse...

"Um encontro de dois: olhos nos olhos, face a face, e quando estiveres perto arrancar-te-ei os teus olhos e colocá-los-ei no lugar dos meus; arrancarei os meus olhos e colocá-los-ei no lugar dos teus; então ver-te-ei com os teus olhos e tu ver-me-ás com os meus." Jacob Levy Moreno

Gabriela Maria disse...

Lindo, Will. Dá cá um abraço.
\___o___/

Anônimo disse...

Ai que lindo!!!!

Unknown disse...

não se esqueça que o sistema é vc mesma , qualquer ser humano representa o sistema então nao culpe o sistema como se ele fosse algo externo a nós . se colocarem um bando de nenens recem nascidos numa ilha com a esperança de que estarao fora do 'sistema' . espere uns 500 anos(ou uns 20) pra vc ver se ja nao estao se matando !!! kkk agente nao tem mta saida

Gabriela Maria disse...

Lucas, se vc reler o último parágrafo vai constatar que é extamente isso que eu relato - a impossibilidade de estar fora do sistema. Mas a gente pode estar consciente dele e tentar fazer algo pra mudá-lo ou mesmo amenizar o q supomos serem as barbáries dele.

E discordo: 100 bebês estranhos numa ilha completamente estranha construiriam uma sociedade com um sistema completamente novo, provavelmente com comportamentos familiares, por ressonâncias mórficas e tudo mais, mas uma sociedade completamente nova. O nome disso é esperança.

Lívio disse...

Pois é, Gabriela, o mundo é um... "sistema de erros" (a expressão é do Drummond).

Ruth disse...

Quero um "caos afetivo" pra eu me derramar nas paixões mais violentas. Me alegro nisso. Sinto falta dos caos que me trazem intensidade

"Ou você vai me enfiar um par de compostos químicos pra resolver o sofrimento que estas nossas vidas miseráveis me causam?"

Eu prefiro o caos e uma boa dose de terapia controlada pelo sistem (ora que assim seja), mas que me permitar aceitar/engolir/vivenciar o caos (ainda que) com uma boa dose de ansiedade patológica.

Gostei do texto desabafóico.

Fernanda Amábile disse...

As vezes quando penso bem parece-me que estamos presos numa jaula em que nós é impossível sair, falta-me ar e fico esperenso que a esperança me iluda de dias melhores.
lindo texto
parabéns.
bjooo

Equilibrista disse...

"seus olhos são muito belos, mas eu prefiro os meus, pois sem eles eu não poderia ver a beleza dos seus"

rsrs

leio-te sempre
e adoro tudo o que você escreve, Gabriela.
beijo.