quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

PARA UM MENINO COM UNS ANÉIS

Porque você é um menino com uns anéis e tem uma voz que não sai, eu lhe prometo amor eterno, salvo se você bater pino, o que, aliás, você não vai nunca, porque você acorda tarde, tem um ar recuado e gosta de brigadeiro: quero dizer, o doce feito com leite condensado.

E porque você é um menino com anéis e chorou na estação de partida porque nossas malas quase seguiram sozinhas e você ficou morrendo de pena delas partindo assim no meio de todas aquelas malas estrangeiras.

E porque você sonha que estão nos partindo ao meio, transfere sua força enorme para o meu cotidiano, e implica comigo o dia inteiro como se eu tivesse culpa de você ser assim tão subliminar. E porque quando você começou a gostar de mim procurava sentir por todos os modos com que vestido eu ia sair e onde eu ia me sentar para fazer mimetismo de amor, se vestindo parecido e se sentar ao meu lado. E porque você tem um rosto que está sempre um nicho, mesmo quando põe o cabelo para cima, parecendo um santo moderno, e anda lento, e fala em 33 rotações mas sem ficar chato. E porque você é um menino com uns anéis, eu lhe predigo muitos anos de felicidade, pelo menos até eu ficar velha: mas nem quando eu der uma paradinha marota para olhar para trás você pode se mandar, eu não deixo, não deixo, não deixo - você me dá um "trupelo", segura meu rosto com carinho e me beija daquele jeito que só a gente conhece.

E porque você é um menino com uns anéis e tem um andar de guerreiro subido; e porque você quando canta nem um mosquito ouve a sua voz, ou a vizinhança inteira ouve, e você desafina lindo e logo conserta, e às vezes acorda no meio da noite e fica falando baixinho coisas que eu quase entendo feito um quase maluco. E porque você tem um cachorrinho chamado Rei e se falar mal de mim para ele, ele vai escutar e não concordar, certeza, porque ele é muito meu chapa, e quando você se sente perdido e sozinho no mundo você se deita agarrado com ele e quase chora feito um bobão e babão fazendo um bico deste tamanho. E porque você é um menino que não pisca nunca e seus olhos foram feitos na primeira noite da Criação, e você é capaz de ficar me olhando horas. E porque você é um menino que tem medo de ver a ausência, e quando eu olho você muito tempo você vai ficando nervoso até eu dizer que é amor e pura vontade de dar.

E porque você é um menino com uns anéis e cativou meu coração e adora feijão com carne, eu lhe peço que me sagre sua Constante e Fiel Cigana Arcanja Maior. E sendo você um menino com uns anéis, eu lhe peço também que nunca mais me deixe sozinha, como nesses últimos vinte e dois anos, antes que a vida nos colocasse de frente, fica tudo uma rua silenciosa e escura que não vai dar em lugar nenhum; os móveis ficam parados me olhando com pena; é um vazio tão grande que os homens nem ousam me amar porque dariam tudo para ter uma escritora penando assim por eles, a mão no queixo, a perna cruzada triste e aquele olhar que não vêem. E porque você é o único menino com uns anéis que eu conheço, eu escrevi uma carta tão bonita para você,  meu namorado, a fim de que, quando eu morrer, você, se por acaso não morrer também, fique deitadinho abraçado com o Rei ou os filhotinhos ou cachorrinhos que vierem depois, relendo sem voz aquele pedaço que eu digo que estar com você é como correr a cavalo e dá vontade de chorar.

E já que você é um menino com uns anéis e eu sempre vejo você chegar perto - tão purinho e branco entre tantos coloridos – o caminho que traz ao nosso abraço e beijo e reencontro, aqui neste mundo recortado por Deus, em que qualquer lugar parece nos pertencer, e o meu coração, como quando você me disse que me amava, põe-se a bater cada vez mais depressa.

E porque eu me levanto para recolher você no meu abraço, e o mundo à nossa volta se faz murmuroso e se enche de vaga-lumes enquanto a noite desce com seus segredos, suas mortes, seus espantos - eu sei, ah, eu sei que o meu amor por você é feito de todos os amores que eu já tive, e você é o filho dileto de todos os homens que eu amei; e que todos os homens que eu amei, como tristes estátuas ao longo da aléia de um jardim noturno, foram passando você de mão em mão até mim, cuspindo no seu rosto e enfrentando a sua fronte; foram passando você até mim entre cantos, súplicas e vociferações - porque você é lindo, porque você é terno e sobretudo porque você é um menino com uns anéis.

("Para Uma Menina Com Uma Flor", de Vinícius de Moraes, adaptado.)

2 comentários:

disse...

Simplesmente lindo.

Lívio disse...

Uma bela crônica, Gabriela.