Quero dizer que eu estava mais certa do que o senhor no dia em que eu disse que o meu problema não era com estabilidade de humor, mas sim com ansiedade. A ansiedade, sim, é que traz sérios problemas à minha vida prática, porque não consigo, por exemplo, pensar em uma só das obrigações que eu tenho a realizar, então penso em todas, e é como olhar para o meu quarto extremamente desorganizado, e em vez de começar a organizá-lo, fecho a porta e durmo no sofá. Com as minhas obrigações, a mesma coisa, eu me desespero ao vislumbrar todas elas e, para pensar noutra coisa, fico lendo, vendo e ouvindo coisas supostamente inúteis na internet e, quando me canso, vou procurar companhia no meu quarto bagunçado, depois, compulsivamente, na geladeira, e assim sucessivamente, ganhando merecidos rótulos de eternamente desleixada e preguiçosa. Só que a minha relação com a geladeira tem ido longe demais e eu já engordei uns dez quilos no último ano e, foi por isto, exatamente por isto, que eu lhe procurei. Mas não sem antes, claro, por uma questão de contextualização, contar como foi a minha vida turbulenta e, vezes, quase psicótica, no último ano, em que o senhor não teve contato comigo.
E o senhor vem me falar do meu caos afetivo: pois eu vou lhe dizer agora o sentido do meu caos afetivo - eu preciso desesperadamente do meu caos afetivo. Preciso dele para não ter que olhar as verdades de mim mesma o tempo todo - quero e preciso urgente e frequentemente das dúvidas que ele me gera, as mais cruéis, as mais inescapáveis, as mais insolúveis possíveis, justo para não ter que chegar à conclusão da qual ainda não consegui satisfatoriamente sair: de que viver, embora tenha lá suas alegrias, é algo tão deslumbrantemente estúpido, é a única oportunidade de conhecer tudo o que se há para conhecer na vida e, mesmo assim, diante da eternidade e da nossa própria finitude, é nada.
Então eu conheço, me esforço, vou com tudo, cheiro as flores, amo homens, mulheres, danço sob os céus mais estrelados e as chuvas mais ácidas, devoro as comidas mais deliciosas, saboreio os drinques mais doces, mergulho nos porres mais violentos. Tudo, tudo pelo meu amado, idolatrado, mas sobretudo, necessário, caos afetivo. Porque chega o momento em que eu me canso desses consumo, intensidade e correria todos, - mas sem o remédio que o senhor receitou, esse momento dura dois ou três dias, já com ele, eu me canso definitivamente, eu passo a odiar esse tal de caos afetivo, volto ao buraco de que hedonismo nenhum vai me tirar nem me fazer esquecer de que viver como a gente aprendeu, com estes valores sacro-cristãos-médicos-positivistas todos, é pura vaidade, prepotência, arrogância, o mesmo buraco que me ensinou que o bonito mesmo é sobreviver, quase como um bicho, mas com a diferença (e não necessariamente vantagem) de termos capacidade de amar, de criar presente e posteridade - ou vai me dizer que você dá o mesmo valor que a si mesmo à formiga que você acabou de pisar ao me receber na porta do seu consultório? Vamos fazer-lhe, pois, um funeral digno - e eu passo a não odiar você.
Até agora eu lhe falei de paciente a médico. Vamos lá, então, falar de igual a igual: o senhor sabe a função dessa tal psicologia e da tal psiquiatria também, não é?! Hipocrisias à parte, exaustões em voga, eu vou dizer: a função é única e exclusivamente manter a ordem do sistema. A não ser pelo cara que, quando pira, começa a agredir fisicamente todo mundo, nenhum desses outros (pensando bem, inclusive os agressivos), considerados "loucos, maníacos, depressivos, dda's, esquizofrênicos", etc, nenhum deles precisaria mais do que de amigos e família, de pessoas que soubessem conversar, ouvir, falar e construir qualquer coisa juntos, olhar pro sofrimento abissal de cada um deles sem querer enquadrá-los numa anormalidade qualquer, porque "Meu Deus! Vai que eles me convencem de que eles é quem estão certos! Vai que esse sofrimento todo é o sofrimento de quem está enxergando algum tipo de "verdade filosófica" que meus olhos não suportariam ver"... Taca pedra na Geni, no Saramago... Amarre na camisa de força, no medicamento, no hospital psiquiátrico, na análise... amarre logo, antes que alguém acredite ou resolva dar e eles mínimo de crédito...
Anteontem, eu acho, um grande amigo e eu concordamos que a boa psicologia é a que trabalha a favor do desaparecimento dela mesma, e o mesmo a respeito da medicina psiquiátrica. Sabe qual a lógica? É mais simples do que a gente pode imaginar: o sistema cria o problema para vender a solução, enquanto mercantiliza a manutenção dele. Exemplos: o sistema cria o crime, pra vender cadeia e empregos; cria guerra, pra vender arma e patriotismo chauvinista; cria patriotismo chauvinista, pra vender poder; cria poder, pra vender alienação; e, sucessivamente, cria miséria, para vender heróis... é isso que me faz sofrer, doutor, não lhe faz, não? Diga a verdade! Ou você vai me enfiar um par de compostos químicos pra resolver o sofrimento que estas nossas vidas miseráveis me causam?
Passa logo a porra da receita contra ansiedade, por favor, porque eu não agüento mais comer e engordar como uma porca e, de todas as ditaduras à que eu tenho que me submeter pelo resto da vida, eu escolho, sincera e conscientemente, a da magreza.
Desde já, grata.